O
texto abaixo é um trecho do livro de Sartre “O Ser e o Nada”. Desenvolve a noção
de liberdade, esclarecendo alguns de seus aspectos.
Liberdade
e Responsabilidade
A consequência essencial de nossas
observações anteriores é a de que o homem, estando condenado a ser livre,
carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si
mesmo enquanto maneira de ser. Tomamos a palavra “responsabilidade” em seu
sentido corriqueiro de “consciência (de) ser o autor incontestável de um
acontecimento ou um objeto”. [...]. Portanto, é insensato pensar em queixar-se,
pois nada alheio determinou aquilo que sentimos, vivemos ou somos. Por outro
lado, tal responsabilidade absoluta não é resignação: é simples reivindicação
lógica das conseqüências de nossa liberdade. O que acontece comigo, acontece
por mim, e eu não poderia me deixar afetar por isso, nem me revoltar, nem me
resignar. Além disso, tudo aquilo que me acontece é meu; deve-se entender por isso, em primeiro lugar, que estou sempre
à altura do que me acontece, enquanto homem, pois aquilo que acontece a um
homem por outros homens e por ele mesmo não poderia ser senão humano. As mais
atrozes situações da guerra, as piores torturas, não criam um estado de coisas
inumano; não há situação inumana; é somente pelo medo, pela fuga e pelo recurso
a condutas mágicas que irei determinar
o inumano, mas esta decisão é humana e tenho de assumir total responsabilidade
por ela. Mas, além disso, a situação é minha
por ser a imagem da minha livre escolha de mim mesmo, e tudo quanto ela me
apresenta é meu, nesse sentido de que
me representa e me simboliza. Não serei eu quem determina o coeficiente de
adversidades das coisas e até sua imprevisibilidade ao decidir por mim mesmo?
Assim, não há acidentes em uma vida;
uma ocorrência comum que irrompe subitamente e me carrega não provém de fora;
se sou mobilizado em uma guerra, esta guerra é minha guerra, é feita à minha imagem e eu a mereço. Mereço-a,
primeiro, porque sempre poderia livrar-me dela pelo suicídio ou pela deserção:
esses possíveis últimos são os que devem estar presentes a nós quando se trata
de enfrentar uma situação. Por ter deixado de livrar-me dela, eu a escolhi; pode ser por fraqueza, por
covardia frente à opinião pública, por que prefiro certos valores ao valor da
própria recusa de entrar na guerra (a estima de meus parentes, a honra de minha
família etc). De qualquer modo, trata-se de uma escolha. [...].
Nessas condições, posto que todo
acontecimento do mundo só pode revelar-se a mim como ocasião (ocasião aproveitada,
perdida, negligenciada etc), ou, melhor ainda, uma vez que tudo aquilo que
nos ocorre pode ser considerado com uma oportunidade,
ou seja, só pode nos aparecer como meio para realizar este ser que está em
questão em nosso ser, e uma vez que os outros, enquanto
transcendências-transcendidas, tampouco são mais do que ocasiões e oportunidades,
a responsabilidade do Para-si se estende ao mundo inteiro como mundo-povoado. É
assim, precisamente, que o Para-si se apreende na angústia, ou seja, como um
ser que não é fundamento de seu ser, nem do ser do outro, nem dos Em-sis que
formam o mundo, mas que é coagido a determinar o sentido do ser, nele e por
toda parte fora dele. Aquele que realiza na angústia sua condição de ser arremessado em uma responsabilidade
que reverte até sobre sua derrelição já não tem remorso, nem pesar, nem
desculpa; já não é mais do que uma liberdade que se revela perfeitamente a si
mesmo e cujo ser reside nesta própria revelação. Mas, como sublinhamos no
início desta obra, na maior parte do tempo fugimos da angústia pela má-fé. (Sartre. O
Ser e o Nada, p. 678-81)