quarta-feira, 20 de novembro de 2013





LEITURA DE “A DESUMANIZAÇÃO DA ARTE”, ORTEGA Y GASSET
por Raphael dos Santos

A Desumanização da arte refere-se a uma compilação de ensaios que Ortega y Gasset (1883 - 1955)  escreveu para jornais analisando a transição da arte do século XIX para a arte do século XX. No século XX, a nova arte é impopular, o problema para ele era estético e amparado por um dado social, que é justamente a impopularidade da nova arte.
Temos então um contraste entre a arte dos séculos XIX e XX.

Século XIX
Século XX
Exemplos
Romantismo
Cubismo
Teatro: Pirandello
Naturalismo
Dadaísmo
Poesia: Mallarmé
Realismo
Futurismo
Pintura: Cubismo e Dadaísmo
Musica Tonal
Musica Atonal
Cinema: Caligarismo e Expressionismo

Ortega ressalta que toda arte jovem nasce impopular e torna-se popular com o tempo, tanto que para comprovar suas palavras, o Cubismo e Surrealismo hoje fazem parte do universo popular da arte, ou de um universo Cult, embora por muito tempo tenham sido renegadas como arte. A exceção a esta regra foi o Romantismo, que por ser mais palatável ao gosto popular, conquistou espaço com certa rapidez.
            O fato é que toda arte agrada a uns e “desagrada” a muitos. O problema levantado por Ortega gira em torno do dado de que a arte contemporânea permaneceu impopular por muitos anos, ela não teve muita aceitação e até hoje algumas vertentes são vistas com “desagrado”. Por qual motivo?
            Ortega vai dizer que a nova arte não é para todo mundo, como era o caso da arte romântica. Temos assim, uma arte dirigida para um público bem específico e distinto, e digamos assim, privilegiado. Neste ponto, ele separa o público em duas classes: os que entendem a nova arte e os que não a entendem. Quem entende sente-se superior, quem não entende fica como que humilhado ante sua falta de “senso artístico”, como se necessitasse de um aparato cultural para entendê-la, uma base que lhe foi negada. Há aqui a necessidade de diferenciar o que é popular do que é impopular. Segundo Ortega, “o estilo que inova demora certo tempo para conquistar a popularidade, não é popular, mas tampouco é impopular”(ORTEGA Y GASSET, 2008, p.21). Por este prisma, a arte sempre divide o publico em duas classes, mas nem por isso torna a arte de todo impopular, no caso da nova arte do século XX, ela não agrada ao publico que entende de arte e muito menos o publico que não entende. A nova arte é inteligível para estas duas classes de público, inteligível para quase todo mundo. Essa nova arte “é impopular por essência; mais ainda, é antipopular. Uma obra qualquer por ela criada produz no público, automaticamente, um curioso efeito sociológico.” (idem) A nova arte também divide o público em duas classes, mas não mais entre os que a entendem e os que não a entendem, mas em uma minoria que lhe é favorável e o resto da massa.
            Por que isso ocorre?


O viajante sobre o mar de névoa (1818), Caspar David Friedrich

            Segundo Ortega, para a maioria das pessoas, o prazer estético acontece quando o observador sente a presença do humano na obra, quando ocorre uma identificação entre quem observa e o que está na obra.

A resposta não oferece dúvidas: um drama agrada à pessoa quando esta conseguiu interessar-se pelos destinos humanos que lhe são propostos. Os amores, ódios, dores, alegrias das personagens comovem o seu coração: participa deles, como se fossem casos reais da vida. E diz que é “boa” a obra quando esta consegue produzir a quantidade de ilusão necessária para que as personagens imaginativas valham como pessoas vivas. [...] Na pintura só lhe atrairão os quadros onde a pessoas encontre figuras de varões e fêmeas com quem, em certo sentido, fosse interessante viver. Um quadro de paisagem lhe parecerá “bonito” quando a paisagem real que ele representa mereça, por sua amenidade ou patetismo, ser visitada em uma excursão.
(ORTEGA Y GASSET, 2008, p.25-26)

O elemento humano que promove esta identificação, toca o observador como se fossem casos reais da vida. É isto que te leva a chorar quando vê determinado filme ou lê determinado livro. É por este fato que o Romantismo conquistou o público logo de cara, porque foi feito para o grande público não como uma arte abstrata, mas como uma reprodução da vida.
Então, temos o humano representado na obra, servindo como o elemento estético que proporciona a apreciação. Quando você retira isso, o observador fica desorientado e não sabe o que fazer. Não ocorre a identificação.
Convém aqui, expor a analise de Ortega sobre o sucesso do Romantismo e do Naturalismo, onde ele faz uma analogia entre observar uma obra de arte e observar um jardim através de uma janela, presente na pagina 27 de A desumanização da arte. Através dessa analogia ele tenta demonstrar que deve haver uma sensibilidade estética para se observar uma obra de arte. Quando olhamos um jardim através de uma janela, não percebemos o vidro, mas se ajustarmos a visão para que ela detenha-se no vidro, o jardim entra em desfoque. Para ele, “a maioria das pessoas é incapaz de acomodar sua atenção no vidro e transparência que é a obra de arte: em vez disso, passa através dela sem fixar-se e vai lançar-se apaixonadamente na realidade humana que está aludida na obra.” (ORTEGA Y GASSET, 2008, p.28). O observador comum, por assim dizer, quando olha uma obra, já visa a busca do elemento humano, ele procura uma identificação. Se não tem o elemento humano, o que ele enxerga é “apenas transparências, puras virtualidades.” (idem).
E assim, Ortega afirma que toda arte do século XIX foi realista, e nisso estaria a raiz do Romantismo e Naturalismo, e consequentemente, o que impulsionou seu rápido sucesso, e vai opinar que isso é só “parcialmente obras de arte,” (idem) para apreciá-la não é necessário uma sensibilidade artística apurada, basta que ocorra a identificação.
O sucesso das obras realistas reside no fato que não eram tidas como arte abstrata, o que leva Ortega y Gasset a afirmar que em todas as épocas existiram dois tipos diferentes de arte: uma para a minoria, que tende para a abstração, e uma para a maioria, que é sempre realista.
Isso não ocorre com a arte contemporânea, pois se configura em uma arte feita somente para os próprios artistas, e não para o publico. A arte passa a ser apenas um objeto artístico. Quanto mais se retira o elemento humano da obra, resta somente o núcleo artístico, possibilitando que seja entendida somente por artistas, como por exemplo, Picasso, que fazia seus quadros para outros artistas observarem e não para o público, como mostrado no filme Modigliani, de 2004, dirigido por Mick Davis – partindo é claro do pressuposto de que o filme retrata a vida dos artistas com certa fidelidade. Embora Picasso e outros artistas da época abrissem exposições ao público, suas obras eram feitas em vista de competir com outras escolas, sendo assim, a opinião do público não era o que mais contava, e sim a inovação artística; e o que podia amparar e fundamentar o que era uma inovação em termos de arte só podiam ser outros artistas ou financiadores.


Guernica (1937), Pablo Picasso

É por isso que Ortega y Gasset fala de uma “arte artística”, onde só o que importa para o artista é o prazer estético e sua realização pessoal.
Isso é o que vai caracterizar a nova arte. Trata-se de uma arte estilizada, o real é deformado em busca de inovações, não sendo necessário a presença do humano, e temos assim uma arte desumanizada, para ela não se torna mais necessário a representação do humano. E é nesse ponto que creio que a fotografia e o cinema tem sua parcela de culpa no processo de desumanização da arte.
Podemos colocar a questão da seguinte maneira: para a arte tradicional há a representação do humano e a continuação do real da vida, nisso residia o fazer artístico do artista. Com isso estou querendo dizer que a arte sempre foi, de alguma forma, representação da vida. Se voltarmos nossos olhos para o passado, o desenrolar da obra de arte, desde o Renascimento, sempre representou uma forma de captar a realidade com fidelidade, mesmo que a obra abordasse um tema fantasioso – o que foi muito comum no Renascimento –, havia elementos que representavam com fidelidade a natureza ou o humano; mesmo nos quadros de Monet ou Van Gogh, no Impressionismo e Pós-Impressionismo, que inovaram em suas técnicas de pintura, temos ainda a presença do humano, embora já haja ali uma tendência para a desumanização. No meio disso surge a fotografia, permitindo que se capte com máxima fidelidade a realidade, e logo depois temos o advento do cinema.
O que isso promove?
Bom, se o trabalho do artista – podemos dizer para efeito de estudo – era captar a realidade, com o surgimento da fotografia, seu trabalho fica, por assim dizer, prejudicado. Se existe um instrumento que capta a realidade com precisão, o que sobra para se fazer com o meu pincel?
Qual a característica da desumanização?
Com a desumanização, a arte tira o foco da objetividade – uma vez que a fotografia ganha esse papel –, e joga esse foco para a subjetividade.
E o que encontramos na subjetividade?
A distorção da realidade.
Entendemos que o expressionismo expressa as emoções humanas, como no quadro O Grito de Edvard Munch. Os filmes do período conhecido como Expressionismo Alemão seguem a mesma linha.


O Grito (1893) Edvard Munch

O cinema expressionista alemão “se valia de maquiagens carregadas, efeitos de luz e sombra, sempre numa tentativa de causar um certo tipo de mal estar, na tentativa de traduzir o estado psicológico retratado na cena, os filmes giravam sempre em torno da insanidade e traição.” (BERGAN, 2010, p.26) Ou seja, a narrativa percorria pela via subjetiva; quando você tenta passar isso na obra, a tendência é a desumanização, pois o que acontece na subjetividade é entendido como a distorção da realidade.
Um bom exemplo disto é O gabinete do Doutor Caligari de 1920, dirigido por Robert Wiene. Todo o filme foi feito com técnicas para se manter uma atmosfera de pesadelo. Onde ocorre o pesadelo? Na subjetividade.
É esse foco na subjetividade que vai impulsionar logo depois o Surrealismo.
Tanto no Expressionismo quanto no Cubismo e Surrealismo, encontramos essa distorção da realidade, no caso do Cubismo o ser humano é representado de forma fragmentada, como se mostrasse pessoas cortadas, através de figuras geométricas. Estas vertentes representam a radicalização da arte, onde aparecem as paisagens interiores e subjetivas do artista. E é essa virada estética, esta mudança de foco para a subjetividade, que favorece a desumanização, deixando o público em uma posição desconfortável, em dificuldade para compreendê-la.

Na arte, toda forma de repetição é nula. Cada estilo que aparece na história da arte pode criar certo numero de formas diferentes dentro de um tipo genérico. Porém, chega um dia em que a magnífica mina se esgota. Isso se passou, por exemplo, com o romance e o teatro-naturalista. É um erro ingênuo crer que a esterilidade atual de ambos os gêneros se deve à ausência de talentos pessoais. O que aconteceu é que se esgotaram as combinações possíveis dentro deles. Por essa razão, deve-se julgar venturoso que coincida com esse esgotamento a emergência de uma nova sensibilidade, capaz de denunciar novas minas intactas.
(ORTEGA Y GASSET, 2008, p.30-31)

            O esgotamento desta variação no que já se tinha estabelecido dentro do contexto artístico, despertou na nova geração de artistas uma repulsa à arte tradicional, gerando uma revolta contra a própria arte e seus padrões estabelecidos. Essa aversão ao tradicional pode ser percebida de forma clara tanto no Manifesto do Surrealismo escrito por André Breton em 1924, quanto no Manifesto Dadaísta escrito em 1918 por Tristan Tzara. “A nova arte é um fato universal” (ORTEGA Y GASSET, 2008 P.30) e criou-se uma situação inalterável, de modo que não há a possibilidade de uma volta à tradição ou uma criação artística dentro da tradição.


BIBLIOGRAFIA

BERGAN, Ronald, ...Ismos para entender o cinema. São Paulo, Globo, 2010

ORTEGA Y GASSET, José, A Desumanização da arte. São Paulo, Cortez, 2008

PARA SABER MAIS

André Breton: Manifesto do Surrealismo

Tristan Tzara: Manifesto Dadaísta

O gabinete do Doutor Caligari 1920, Robert Wiene



Modigliani: Paixão pela vida, 2004, Mick Davis

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