O texto abaixo, de Luiz Moutinho, é uma pequena explicação sobre a noção de liberdade em Sartre, diferenciando-a do relativismo e do individualismo.
[Liberdade,
relativismo e valor]
Para recusar a acusação de que Sartre é
relativista, é necessário distinguir o conceito sartriano de liberdade de um
outro que está por trás dessa acusação [de relativismo]. Aquele que, uma vez
afastado o dever, a regra, a prescrição, conclui pela liberdade para se fazer o que se quer, raciocina como se liberdade
implicasse em uma falta de regras, em uma ausência de comandos – ou, mais
amplamente, em uma ausência de impedimentos externos para se dar livre curso ao
que quer que seja, como se a liberdade fosse maior ou menor na proporção
inversa desses impedimentos externos. Em suma: sou livre quando nada está no
meu caminho! Aquele que raciocina assim mede a liberdade da ação pela falta de obstáculos: a liberdade
não é uma qualidade da própria ação, mas o resultado
dessa ausência de obstáculos. Do ponto de vista de Sartre, que há de errado
aqui?
O núcleo do erro consiste em que esse
raciocínio não põe em questão os fins visados pelo agente: dado um fim, a liberdade será a ausência de obstáculos para
realizar esse fim. Mas, e esse fim, de onde ele vem? Ele foi livremente escolhido? Para Sartre, basta
que se coloque essa questão para que tudo mude: somos levados a recuar um passo
e caracterizar a própria ação. Nesse caso, ela será livre não na medida em que
ela alcança fins, mas na medida em que
ela os determina a partir de si mesma: não é o êxito, não é o sucesso da
empreitada que torna a ação livre, mas a escolha autônoma dos fins. Com isso,
tudo muda: a liberdade ganha um sentido positivo, ela se torna criadora, ela
inventa fins (nunca no vazio, como notávamos, mas em situação, no mundo).
[...]. Em toda parte, é sempre o mesmo poder da liberdade que Sartre quer
destacar e que, no plano da ética, pode ser expresso assim: os valores não
existem por si mesmos, eles só existem pela
liberdade, a liberdade é a fonte do valor [...].
Ora, é porque cria valores que a
liberdade sartriana não é nunca opção pelo individual: o valor almeja sempre,
carrega sempre consigo a pretensão de universalidade; mesmo o menor dos nossos
atos carrega essa pretensão. Não é portanto verdadeiro que Sartre afaste o
universal: ele apenas o redefine a partir da liberdade, como apelo, não como comando. Claro que posso
negar que meu ato carregue a pretensão de universalidade e afirmar que meu ato
valia... só para mim. Mas, com isso, nada mais faço que... cometer uma
imoralidade! A imoralidade se define por aqui: por tudo aquilo que visa
suprimir, condicionar, evitar a liberdade. Só é verdadeiro, portanto, que
Sartre recuse submeter a ação a algum critério pelo qual se possa afirmar sua
moralidade, se entendermos por critério uma norma prévia à ação. O critério,
para Sartre, é intrínseco à ação: é
sua condição livre. Daí porque as
desculpas, as justificativas para isentar-se da responsabilidade pelos atos
praticados são, para ele, tantas formas de agir imoralmente [e portanto de
má-fé].
(Luiz
Moutinho. “Sartre: a liberdade sem desculpas”, p. 219-220; 223-224. In: V.
Figueiredo. Seis filósofos na sala de
aula)
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