sábado, 3 de novembro de 2012

Leituras complementares 4: Liberdade, relativismo e valor


O texto abaixo, de Luiz Moutinho, é uma pequena explicação sobre a noção de liberdade em Sartre, diferenciando-a do relativismo e do individualismo.

[Liberdade, relativismo e valor]

Para recusar a acusação de que Sartre é relativista, é necessário distinguir o conceito sartriano de liberdade de um outro que está por trás dessa acusação [de relativismo]. Aquele que, uma vez afastado o dever, a regra, a prescrição, conclui pela liberdade para se fazer o que se quer, raciocina como se liberdade implicasse em uma falta de regras, em uma ausência de comandos – ou, mais amplamente, em uma ausência de impedimentos externos para se dar livre curso ao que quer que seja, como se a liberdade fosse maior ou menor na proporção inversa desses impedimentos externos. Em suma: sou livre quando nada está no meu caminho! Aquele que raciocina assim mede a liberdade da ação pela falta de obstáculos: a liberdade não é uma qualidade da própria ação, mas o resultado dessa ausência de obstáculos. Do ponto de vista de Sartre, que há de errado aqui?
O núcleo do erro consiste em que esse raciocínio não põe em questão os fins visados pelo agente: dado um fim, a liberdade será a ausência de obstáculos para realizar esse fim. Mas, e esse fim, de onde ele vem? Ele foi livremente escolhido? Para Sartre, basta que se coloque essa questão para que tudo mude: somos levados a recuar um passo e caracterizar a própria ação. Nesse caso, ela será livre não na medida em que ela alcança fins, mas na medida em que ela os determina a partir de si mesma: não é o êxito, não é o sucesso da empreitada que torna a ação livre, mas a escolha autônoma dos fins. Com isso, tudo muda: a liberdade ganha um sentido positivo, ela se torna criadora, ela inventa fins (nunca no vazio, como notávamos, mas em situação, no mundo). [...]. Em toda parte, é sempre o mesmo poder da liberdade que Sartre quer destacar e que, no plano da ética, pode ser expresso assim: os valores não existem por si mesmos, eles só existem pela liberdade, a liberdade é a fonte do valor [...].
Ora, é porque cria valores que a liberdade sartriana não é nunca opção pelo individual: o valor almeja sempre, carrega sempre consigo a pretensão de universalidade; mesmo o menor dos nossos atos carrega essa pretensão. Não é portanto verdadeiro que Sartre afaste o universal: ele apenas o redefine a partir da liberdade, como apelo, não como comando. Claro que posso negar que meu ato carregue a pretensão de universalidade e afirmar que meu ato valia... só para mim. Mas, com isso, nada mais faço que... cometer uma imoralidade! A imoralidade se define por aqui: por tudo aquilo que visa suprimir, condicionar, evitar a liberdade. Só é verdadeiro, portanto, que Sartre recuse submeter a ação a algum critério pelo qual se possa afirmar sua moralidade, se entendermos por critério uma norma prévia à ação. O critério, para Sartre, é intrínseco à ação: é sua condição livre.  Daí porque as desculpas, as justificativas para isentar-se da responsabilidade pelos atos praticados são, para ele, tantas formas de agir imoralmente [e portanto de má-fé].

(Luiz Moutinho. “Sartre: a liberdade sem desculpas”, p. 219-220; 223-224. In: V. Figueiredo. Seis filósofos na sala de aula)


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