O texto abaixo é um pequeno recorte de "O Ser o Nada" em que Sartre faz uma caracterização da má-fé e a exemplifica a partir do sentimento de tristeza.
[Má-fé:
característica e exemplo]
Por
certo, para quem pratica a má-fé, trata-se de mascarar uma verdade desagradável
ou apresentar como verdade um erro agradável. A má-fé tem na aparência,
portanto, a estrutura da mentira. Só que – e isso muda tudo – na má-fé eu mesmo
escondo a verdade de mim mesmo. Assim, não existe neste caso a dualidade do
enganador e do enganado. A má-fé implica por essência, ao contrário, a unidade
de uma consciência. [...]. Na má-fé, não há mentira cínica nem sábio preparo de
conceitos enganadores. O ato primeiro de má-fé é para fugir do que não se pode
fugir, fugir do que se é. [...]. Se a má-fé é possível, deve-se a que constitui
a ameaça imediata e permanente de todo projeto do ser humano, ao fato de a consciência
esconder em seu ser um permanente risco de má-fé. E a origem desse risco é que
a consciência, ao mesmo tempo e em seu ser, é o que não é e não é o que é.
(Sartre.
O Ser o e Nada, p. 94; 118)
***
Mas
eis um modo de ser que só concerne a mim: estou triste. Essa tristeza que sou,
não o serei à maneira de ser o que sou? Contudo, que será ela, senão a unidade
intencional que vem reunir e animar o conjunto de minhas condutas? É o sentido
desse olhar embaciado que lanço sobre o mundo, desses ombros curvados, dessa
cabeça baixa, dessa flacidez que domina meu corpo todo. No entanto, sei, no
exato momento que executo cada conduta dessas, que poderia não executá-las. Se
de repente aparecesse um estranho, ergueria a cabeça, retomando meu porte ativo
e vivaz – e que sobraria de minha tristeza, senão o fato de que iria
complacentemente reencontrá-la, assim que o estranho fosse embora? Por outro
lado, a própria tristeza já não será uma conduta?
Não será a consciência que se afeta de tristeza como recurso mágico contra a
situação de urgência. E, mesmo nesse caso, sentir-se triste não será,
sobretudo, fazer-se triste? Que assim seja, pode-se dizer. Mas, apesar de tudo,
dar-se o ser da tristeza não será receber esse ser? Afinal, pouco importa
de onde o receba. O fato é que uma consciência que se afeta de tristeza é triste, exatamente por causa disso.
Mas é compreender mal a natureza da consciência: ser-triste não é um ser já
feito que me dou, como posso dar um livro a um amigo. Não tenho qualificação
para me afetar de ser. Se me faço
triste, tenho de fazer-me triste de um extremo ao outro de minha tristeza, não
posso aproveitar o élan adquirido e deixar fluir minha tristeza sem recriá-la
ou sustentá-la, à maneira de um corpo inerte que prosseguisse seu movimento
depois do choque inicial: não existe inércia alguma na consciência. Se me faço
triste, significa não sou triste: o
ser da tristeza me escapa pelo ato e no ato mesmo pelo qual me afeto dela.
(Sartre.
O Ser o Nada, p. 107-108)
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